Estava aqui na minha lista de tarefas que eu precisa escrever um texto para situar em que pé estamos na pesquisa. Toda vez que me pergunto onde estou e para onde vou - um clássico da pesquisa, dos processos criativos, da vida de uma forma geral - a vontade é de ir pra baixo das cobertas ou de botar um vídeo de qualquer bobagem no youtube. Eu sei que essa não é uma sabotagem exclusiva minha. Onde estamos e pra onde vamos são questões que aludem a todo um existencialismo ancestral, então, se você sofre com isso, pode ficar tranquilo. Você não está só!
Hoje é 31 de março de 2020. Estamos no 14º dia de isolamento em decorrência de uma pandemia - para alguns a quarentena começou um pouco antes. A Covid 19, doença causada pelo coronavírus, teve os primeiros casos registrados na China no final do ano passado e hoje o Brasil registra 201 mortes e 5.517 pessoas infectadas há pouco mais de um mês do registro do primeiro caso brasileiro.
Desde que o projeto “Ações para Reexistir” foi saindo do papel ficou claro que o corpo precisava acordar. Depois do começo da prática em sala, em outubro do ano passado com Sandra Meyer, busquei retomar alguns princípios corporais que haviam ficado em segundo plano nos últimos anos. Intensifiquei o processo de desenferrujar o corpo: academia, corrida, aulas de dança, etc. A partir dos princípios e referências que Sandra trouxe ao processo fui pra sala “sozinho” trabalhar em relação ao espaço e às temáticas/questões do projeto, levando comigo as diversas referências que fomos encontrando - e que estão sendo compartilhadas aos poucos aqui e nas outras mídias do projeto. Registrei e publiquei aqui no blog três exercícios em vídeo feitos em março, material que fui mostrando para Sandra e recebendo suas provocações.
Os dois primeiros vídeos foram gravados na Sala de Dança da Casa de Cultura Dide Brandão, e os chamei de “Topografia 1 e 2”. Fui chamando essa parte do trabalho de "Topografia" porque tenho lido/pensado sobre questões que envolvem espaços patrimoniais e sobre o quanto as minhas memórias como ator se fundem/atravessam os espaços culturais da cidade onde fui me tornando ator. Nesse trabalho estou explorando ações/movimentações que dialogam com o espaço no momento presente, as sonoridades, a luz, os acontecimentos daquele dia, enfim, refletindo sobre o quanto o corpo faz parte do espaço e vice versa. Inevitavelmente, a questão reexistência/resistência foi dando forma a um repertório que envolve cair, levantar, se atirar, correr, chacoalhar pra não pensar, enfrentar, desistir, etc, e essas ações vão se ressignificando diante de diferentes espaços, acasos e acidentes de percurso.
Um parêntese sobre o acaso: o livro do Paul Auster que estava me assombrando, “O Inventor da Solidão”, sobre o qual falei neste post, foi concluído com sucesso - leia-se “sucesso” como uma bagunça tremenda dentro de mim e em breve falaremos dele em outro post. O fato é que eu voltei a ler esse livro do Auster por causa de outra obra dele especificamente sobre o acaso chamada “O Caderno Vermelho”. Tenho pensado muito sobre o acaso, sobre a escuta aberta e sobre os acidentes que desenham um território, a tal topografia. Há uma minissérie americana chamada “Chernobyl”, uma produção de 2019 da qual assisti “por acaso” um episódio em um voo pra Brasília agora em fevereiro indo visitar minha irmã. No voo só havia o primeiro episódio disponível, e quando chego em Brasília minha irmã tinha a série toda no computador. Assisti transtornado em meio à pandemia chinesa que se anunciava ainda parecendo algo distante. Fecha parêntese.
O terceiro vídeo foi gravado em uma situação especial: na sala de casa já em quarentena. Brinquei que ia se chamar “Chernobyl” e fui para a nova sala de trabalho. Deixei a televisão ligada em um canal de notícias com a pauta monotemática “Covid 19”. Quando apertei o play e sentei no sofá para começar a improvisação, o jornalista começa comentar uma citação infeliz do deputado Eduardo Bolsonaro em seu twitter comparando o corona vírus com a “tragédia” de Chernobyl. Segundo a conexão brilhante de Bolsonaro, ambas seriam culpa de ditaduras comunistas. Vocês calculem aí de quantas pessoas eu precisaria trabalhando aqui na quarentena para que essa notícia entrasse exatamente na hora que o vídeo começa, caso fosse esse o plano.
Depois desse terceiro vídeo, e diante de um isolamento que não sabemos quando terminará, fizemos nossa segunda reunião coletiva, dessa vez em um chat virtual, e conversamos sobre a impossibilidade trabalharmos juntos presencialmente por um bom tempo. Arquitetamos algumas ideias de trabalho virtual com propostas de filmagens que acontecerão no ateliê quarentênico mais conhecido como minha casa, e alinhamos outros procedimentos virtuais, tarefas e próximos encontros.
Cacilda Brecht, minha colaboradora canina de 7 anos, que performou em “Chernobyl”, acaba de passar por uma cirurgia para retirar alguns nódulos. Estamos neste momento enfrentando um câncer, num momento de isolamento em que a vida tomou proporções dramáticas dentro e fora do corpo e do espaço. A virtualidade virou uma forma de relação desesperada. Risos e lágrimas nos dispositivos virtuais.
O projeto que nasceu de uma carta melancólica em janeiro de 2019 (neste post) ganhou uma vida enorme ao longo dos encontros com a equipe, com as(os) artistas/referências, e tem me dado uma força danada pra peitar a briga que tem sido esse momento de retrocesso e tristeza na política e na vida. Aí vem um vírus e a gente precisa se isolar. Como resistir e manter essa força aqui na quarentena? Impossível que a vida não seja a matéria-prima deste momento (será que em algum momento deixou de ser?) Reexistir para Resistir. Resistir para Reexistir. Tarde demais para desistir!
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