“Cantando na Chuva”, que muitos insistem em chamar de “Dançando na Chuva” - para a minha profunda irritação infantil - é um filme estadunidense de 1952, considerado um dos maiores musicais de todos os tempos. Figura em diversas listas de melhores filmes da história, segundo críticos e especialistas. Figura também na minha, em primeiro lugar, desde meus 12 ou 13 anos - nunca lembro direito quantos anos eu tinha, talvez eu tivesse 14, mas na minha cabeça eu era uma criança emocionada, sem saber porque, numa madrugada lá longe.
Santos, litoral do estado de São Paulo, começo dos anos de 1990, bairro do Bom Retiro. Uma família que mediava todos os conteúdos, horário pra dormir, aquelas coisas. Mas no fim de semana podia dormir mais tarde, e se meu pai assistisse os filmes junto, aí é que podia mesmo. Pois bem, sábado tinha o Supercine, a Sessão de Gala e o Corujão, com um filme por volta das 23h, outro pela 01h e outro pelas 03h - tudo uma grande especulação aqui sobre os horários e nomes. Lembro-me desta noite em que assistimos no Supercine um destes filmes B sobre alguém que supera um desafio, ou algo que o valha. Só que nos intervalos comerciais anunciaram que o filme seguinte da noite seria “Ata-me”, de Pedro Almodóvar. O cinéfilo louco (e precoce!) arregalou os olhos! “Mãe, por favor, deixa eu ver esse?!”. Meu pai topou ver comigo já que se tratava de um filme bastante... como dizer? ... Caliente! Lógico que ele tinha outros interesses além da mediação de conteúdo. Acontece que no meio da sessão de “Ata-me”, os intervalos anunciaram o próximo filme: “Cantando na Chuva”. Meu pai já tinha dormido no sofá, e depois ido pra cama, então era só continuar a saga. Ao fim do filme, devia ser umas 5 da manhã, eu vi “a televisão acabar”, como a gente falava - pra quem não sabe do que eu estou falando, segue um vídeo na sequência. E eu não sabia o que fazer com aquele filme, e com o Gene Kelly - talvez o meu primeiro crush da vida, mesmo sem saber que crush chamava crush, e sem nenhum tipo de erotização (apenas acho). Depois ouvi dizer que ele era insuportável, mas não quero destruir este imaginário. Deixemos assim.
“Cantando na Chuva” dirigido por Gene Kelly e Stanley Donan, se tornou meu filme preferido. Muito possivelmente assisti filmes melhores nestes mais de 25 anos, mas o que define nossos melhores e piores é sempre um tanto de afeto e um tanto de coisas que não saberíamos explicar. Eu aprendi isso com este filme e com o meu amigo Malcon Bauer (saudades, polaco). O filme retrata o universo do cinema estadunidense no período de transição entre o cinema mudo e a arte dos novos tempos: o cinema falado; a grande revolução que acabaria por revelar quais atores teriam, ou não, talento necessário para a palavra, o som, a voz e o que mais esta nova forma demandasse. Além da cena antológica que dá nome ao filme, é impossível esquecer a performance deslumbrante de Jean Hagen como a diva do cinema mudo - e que tem uma voz insuportável - fazendo aulas de dicção e oratória.
Há certa tristeza na situação retratada, claro! Contudo, uma comédia musical consegue transformar as coisas, o que aconteceu por muitos e muitos anos. Nunca antes eu tinha pensado que um novo tempo chegaria e nos faria pensar que talvez não existiremos mais, porque não somos tecnicamente atrativos. Mas, cá estamos em meio à uma pandemia lidando com a mediação forçada de câmeras, conexões, sinais, códigos, senhas e tantos outros percalços. Mas, o maior deles se resume à mesma pergunta lá do filme que o menino viu no começo dos 90: quem está e quem não está preparado para os novos tempos? Eu fotografo bem? Minha voz é boa no vídeo? Minha voz é como eu ouço ao falar ou é como chega no meu retorno? E outra pergunta: eu quero lidar com estas formas não presenciais? Fiquem tranquilos! Vocês acompanharam esta fábula até aqui e eu tenho a resposta! A resposta é: “Acho melhor não”. E se eu gostar da ausência de vocês? E se eu gostar de não conviver mais? E seu eu gostar da mediação tecnológica que há muito já nos separa - lembrem-se que antes a gente simplesmente ligava pra alguém pra conversar, hoje a gente manda uma mensagem antes perguntando se podemos telefonar.
Há vários atrativos nos novos tempos - que eu prefiro chamar de tempos intermediários. Mas tenho medo de que os “novos tempos” consolidem novas formas de relação entre público e artistas, como o cinema falado o fez, tornando o cinema mudo uma arte descartada. Espero estar errado e apenas afetado por uma melancolia do momento. Vamos aderir às novas práticas? Sim! Esse, inclusive, é um projeto de pesquisa interdisciplinar; mas precisou vir uma pandemia pra gente entender que o presencial é tão importante. Eu não estou preparado pro novo normal. Posso me adaptar a ele por certo tempo. Mas eu queria o velho normal aqui. Eu e você, olhando um pro outro e respirando o mesmo ar. Seguimos trabalhando, tentando não enlouquecer. Que saudade que eu tenho. Do Corujão, de cantar na chuva e de você.
Apenas maravilhoso relembrar o "ver a televisão acabar!
Obrigado, Samuca querido! Fico bem feliz pelo teu retorno, sobretudo pelo tanto de admiração que tenho por ti! Seguimos com um pouco de humor no meio destes tempos insanos!
Que lindo texto, Dani! Gosto muito de como você é ou constrói as suas memórias - se fake se não... pouco me importam - com um humor delicioso e um pesar profundo.