“Por que um cachorrinho enterra seu osso?
Por que escrever 'eu te amo' em todas as páginas?
Por que um pássaro constrói seu ninho tão alto?
Por que abraçar o bebê quando ele chora?” *
Tom Waits, Tell Me
Hoje compartilho um texto importante que foi escrito por mim mesmo. Demorei algum tempo pra entender que ele é uma peça fundamental deste projeto. Ele foi escrito em 2018, no primeiro turno da eleição presidencial, quando o Brasil anunciava a catástrofe que estamos vivendo. Mas por que voltar àquele período?
Estou participando de um workshop online chamado “Dramaturgias híbridas e performativas: o potencial do documento como dispositivo de criação”, com a atriz, diretora e dramaturgista Janaína Leite (SP). A artista desenvolve uma pesquisa autoral e concebeu os espetáculos “Festa de Separação: um documentário cênico”, “Conversas com meu pai” e “Stabat Mater” e lançou o livro “Autoescrituras performativas: do diário à cena”, consolidando sua pesquisa sobre autobiografia e documentário no teatro. O workshop está na metade e tem sido uma experiência daquelas que abrem janelas enormes.
Um dos conceitos que Janaína explora em seu trabalho é o de “documento”, que se trata de um objeto que dispara um processo, um dispositivo de memória e afeto que pode dar início a um trajeto de pesquisa e criação. Pode ser uma caixa de cartas, um brinquedo antigo, um diário, uma certidão de divórcio, uma imagem, enfim, algo que te instigue. Por meio desta provocação entendi que o documento que disparou o processo que vocês estão acompanhando por aqui é um post escrito no Facebook no dia 06 de outubro de 2018.
Era véspera da eleição, e eu resolvi tirar o último dedinho de dentro do armário numa tentativa desesperada, mas, estrategicamente pensada de tentar virar voto de familiares e amigos. Não virei voto algum, pelo que sei, mas a publicação gerou um turbilhão na vida. Se alguém tinha alguma dúvida sobre a minha sexualidade naquele momento, estava entregue publicamente uma mala-direta com um informe-babado!
O texto a seguir foi escrito aos prantos e sob efeito de umas tacinhas de vinho, mas depois devidamente revisado com a sobriedade possível. Só estamos aqui hoje por conta de uma noite em que eu explodi e escrevi um relato pessoal - talvez o mais pessoal de todos. O post acompanhava a foto que vocês verão a seguir, com um Daniel bebezinho que nasceu e já teve catapora, e que também não fazia a menor ideia do que viria pela frente.
EU NÃO QUERO MAIS TER MEDO
DE SER QUEM EU SOU
6 de outubro de 2018
“Dizem que eu já tinha “trejeitos” desde pequeno. Talvez ninguém soubesse como lidar com isto. Mais do que qualquer um eu fui quem menos soube como resolver tal desconforto.
Acho que ali pelos 11 ou 12 anos eu comecei a entender que era “diferente”. Imediatamente me vesti com uma armadura poderosa: eu virei o carinha engraçado, uma atitude talvez desesperada para disfarçar a “anormalidade” e ser aceito. Passei a adolescência escondido atrás de minha armadura. Me isolei nos meus afazeres de cinéfilo precoce e nunca me senti confortável para falar com quem quer que fosse sobre aquilo que me afligia. Nunca senti abertura para tratar do tema. Tinha medo de ser quem eu era.
O tempo foi passando e o Teatro apareceu no meio do caminho, esse ambiente em que a gente precisa descobrir/enfrentar quem a gente é de verdade para que as coisas aconteçam. Encontrei a minha turma, aquela gente estranha que se vestia como quisesse, falava o que quisesse, e que era, de verdade, quem quisesse ser.
Já adulto, quando me perguntavam quando eu tinha saído do armário, eu sempre gostei de responder: “Nunca estive lá”. Eu mentia e as pessoas acreditavam. Ouvi algumas vezes também que era admirável o quanto eu lidava bem com a minha sexualidade. Fui me dando conta do quanto eu mentia. Eu mentia muito bem.
Eu odiava a escola, o bairro, a vida de uma forma geral, porque eu tinha que mentir. Eu tinha que pular o muro pra não apanhar de um bando de otários violentos juvenis. Nunca vou esquecer do dia em que uns guris do colégio vieram me bater (porque eu revidei quando me chamaram de viadinho) e quem se enfiou na minha frente pra me defender foi a minha irmã. Uma mina foda, que virou uma mulher foda, como tantas mulheres fodas que fazem toda a diferença neste momento.
Viadinho, Bambi, queima-rosca, boiola, bichinha, morde-a-fronha, baitola... A lista de insultos é bem maior e de nível bem mais baixo. Eu cresci tendo medo de ser quem eu era.
Mas tem uma coisa pior do que ter medo. Depois de muitos anos eu passei a ter vergonha de ser quem eu era. Eu passei a achar que era errado ser quem eu era. Eu tive vergonha de me interessar pelos meninos. Eu tive vergonha de ter meu primeiro namorado. Eu nunca andei de mãos dadas com namorado algum. Eu tinha vergonha porque me diziam que eu não andava como homem, que eu rebolava, que não tinha voz de homem, que eu não era homem de verdade.
Mais um tanto de tempo passou e as coisas pareciam melhorar, e a gente foi conseguindo ter menos medo. A gente começou a enfrentar. A gente foi sendo apoiado por um monte de gente foda que brigou, apanhou e morreu pra que a gente pudesse ter menos vergonha e medo. O tempo foi passando e a gente foi entendendo que dali um tempo seria até possível dar as mãos, flertar em público, abraçar e beijar quem a gente amasse sem ter medo e sem sentir vergonha.
Faz algum tempo que eu voltei a ter medo. Vergonha de quem eu sou eu não vou ter nunca mais. Eu posso apanhar e morrer, mas nunca mais vou ter vergonha de ser quem eu sou. Eu trabalhei pra caralho nessa vida, eu busquei ser sempre melhor, não que os outros, mas melhor que eu mesmo, eu exercito a empatia diariamente, eu acredito e brigo pra que a gente tenha um mundo menos merda do que esse que a gente vive. Vergonha nunca mais. Adoraria dizer que medo nunca mais. Mas eu tenho muito medo do que teremos pela frente.
Estamos em 2018 à beira de colocar no poder um sujeito acéfalo que bosteja que pessoas como eu seriam machos se tivessem apanhado o suficiente, que ninguém quer ter um funcionário viado, um monstro que homenageia ditador, que diz que o erro da ditadura foi torturar e não ter matado, um imbecil que teve não sei quantos filhos homens e que de uma fraquejada veio sua filha mulher, que diz para uma colega de trabalho que não a estupraria porque nem isto ela não merecia. Tudo isso está registrado e compartilhado em massa, então, não venha dizer que estou disseminando notícias falsas.
Você pode estar se perguntando: o que eu tenho a ver com tudo isto? Eu te respondo: Quando alguém considera colocar um sujeito como esse no lugar de representante do nosso país, é necessário compreender que discursos de ódio legitimam que o ódio de outros possa ser trazido à tona sem culpa. É esse tipo de discurso e atitude que fez e faz com que gente da pior espécie se sinta no direito que ameaçar, agredir, e dizer que não te mata porque “ainda” é crime. Só nessa semana acompanhei diversos relatos de LGBTQIA+ que passaram por esse tipo de ameaça. Um deles, próximo do meu círculo, um cara foda que tem coragem de enfrentar essa gente e não se esconde como tantos de nós ainda faz, e como eu fiz durante tanto tempo. O que faz uma pessoa achar que tem o direito de te ameaçar e agredir? Respondo novamente. Em primeiro lugar: uma cabeça e uma existência doentes. Em segundo, e não em ordem de importância: a influência de pessoas públicas que deveriam nos representar e proteger e que, ao invés disto, destilam o ódio e o preconceito.
No meio deste furacão que estamos vivendo, a gente já perdeu. A gente já viu quem as pessoas próximas ou distantes são, em quem e em que elas acreditam e apostam. Mas eu ainda tenho a esperança de que seja alguma ingenuidade passível de transformação. Aos meus parentes e colegas que ainda acham que podem consertar o país elegendo um sujeito homofóbico, racista, misógino e despreparado a tal ponto de não ter qualquer plano de governo que não seja baseado em ódio e truculência, eu peço que pensem com carinho nisto. Não deixe seu ódio pelo PT jogar o bebê fora junto com a água do banho. Você tem várias opções se o seu problema é com o PT. Não é com truculência que vamos consertar o país. Precisamos de diálogo e de empatia, coisas raras nos dias de hoje.
Não sejam parte daquele bando de otários violentos juvenis que fizeram esse cara aqui ter tanto medo de ser quem é e do que está por vir. Tá tudo na nossa mão. Tenho fé que a gente vai reverter esse ódio com empatia e amor.”
* A tradução de "Why hold the baby when the baby cries?" seria mais correta como "Por que segurar o bebê quando o bebê chora?". Mas eu preferi usar "Por que abraçar". Licença poética mesmo.
"Quando alguém considera colocar um sujeito como esse no lugar de representante do nosso país, é necessário compreender que discursos de ódio legitimam que o ódio de outros possa ser trazido à tona sem culpa." Perfeito!
Excelente texto. De fato são cabeças de existências doentes ou, visto de outra forma, ainda muito infantis em human(idade). Talvez sejamos governados por uma grande minoria (para citar outro texto seu) de sociopatas cegos pelo Ninguém.
Mas que bom que já fazemos parte dos que apanham e não mais dos que batem. Que já podemos olhar com empatia, inclusive para os que estão amputados dela. Somos artistas, os que vão na frente tocando trombeta, anunciando o porvir, retratando o novo mundo no alaúde e…
Que bom ler isso! Thanks my brother!