2019
Eduardo Viveiros de Castro
"O símbolo da resistência sobre o qual gostaria de falar um pouco mais longamente é o objeto de meu trabalho como etnólogo. Refiro-me aos povos indígenas no Brasil, símbolo da resistência imanente contra o projeto de extermínio das diferenças que o presente governo, por sua vez, simboliza, ao se mostrar como a exacerbação brutal de uma atitude plurissecular das elites governantes do país. E falo em resistência imanente porque os povos indígenas não podem não resistir sob pena de não existir como tais. Seu existir é imanentemente um resistir, que condenso no neologismo rexistir.
O modo de manifestação dessa resistência imanente é uma condição estrutural que chamarei de autonomia metafísica, ou, adaptando e generalizando um termo oficial, de isolamento: a alteridade irredutível da posição de “indígena”, seu isolamento em relação ao
atrator identitário representado pela posição do “Branco”, o lugar vazio da Maioria. Digo “vazio” porque todos sabemos, naturalmente, que no Brasil ninguém é branco — exceto quem é.
Os índios no Brasil são uma minoria étnica, social, cultural e política. Essa situação ou condição minoritária não tem um sentido estatístico — ainda que seja indissociável de sua inserção em um Estado. Embora a população indígena seja censitariamente pequena dentro do conjunto de “cidadãos” do Estado nacional, muitas outras minorias nacionais — raciais, de gênero, de orientação sexual e outras — têm populações expressivas, em muitos casos numericamente majoritárias.
Gilles Deleuze & Félix Guattari, em seu Mil Platôs, oferecem uma reflexão importante sobre as noções de “minoria” e “maioria” (ou de modos “menor” e “maior” de declinar um conteúdo expressivo qualquer). Elas dependem da oposição entre uma constante e uma variável, e sua transcendência pela noção propriamente minoritária de variação. Minoria e maioria não se opõem de uma maneira apenas quantitativa. Maioria implica uma constante,
algo como um metro-padrão que lhe serve de instrumento avaliador. “Suponhamos” (dizem D&G; mas a suposição é uma constatação) que a constante ou padrão ocidental seja algo como “humano, branco, macho, adulto, urbanita, heterossexual, falante de uma língua europeia ‘de prestígio’” — podemos acrescentar, no caso brasileiro: católico nominal, de classe média ou alta, morador do Sul ou do Sudeste, de formação superior, com uma determinada pauta de consumo, e outras determinações facilmente enumeráveis. Como observam ironicamente os autores, este “humano, branco, macho etc.” é efetivamente a Maioria, mas ele é menos numeroso que os mosquitos, as mulheres, os negros, os camponeses, os homossexuais e assim por diante. Ele aparece ao mesmo tempo como constante e como uma variável de onde se extrai a constante. A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o inverso; ela supõe o metro-padrão e não o inverso. Mas por outro lado, a maioria, na medida em que é analiticamente compreendida pelo metro-padrão, nunca é alguém, ela é sempre Ninguém, “ao passo que a minoria é o devir [a variação, diferente de uma variável] de todo mundo”, sua trajetória potencial, na medida em que todo mundo desvia de um modo ou outro do modelo padrão. Por isso os autores distinguem entre o majoritário como sistema homogêneo e constante, as minorias como sub-sistemas variáveis (incluídas e dominadas pelo sistema majoritário), e o minoritário como devir ou trajetória potencial, como variação contínua, figura universal da consciência minoritária. “É a variação contínua que constitui o devir minoritário de todo mundo, por oposição ao Fato majoritário de Ninguém”. E como sabemos, nós brasileiros, somos governados por Ninguém — mesmo os governantes são governados pelo metro-padrão da Maioria."
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