Vladimir Maikóvski
(1926)
Tradução de Augusto de Campos*
Eu estava aqui pensando que este projeto (que abriga este blog) nasce naquele outubro de 2018 em que perdemos a fé em quase tudo.
O último domingo foi um dia muito importante para a história do nosso país e reverberou aqui, e´claro! Deu vontade de voltar a postar, embora eu não saiba falar ainda sobre tudo o que está acontecendo, inclusive porque os próximos anos não serão fáceis. Mas estava às voltas aqui com o Vlad (rs), um dos meus poetas preferidos, e estou apenas passando pra retomar as postagens e compartilhar com vocês essa lindeza!
Seguimos na luta, afinal, já diria o Vladi: "Gente é pra brilhar!"
<3
"Cidadão fiscal de rendas! Desculpe a liberdade. Obrigado... Não se incomode... Estou à vontade. A matéria que me traz é algo extraordinária: o lugar do poeta na sociedade proletária. Ao lado
dos donos de terras e vendas estou também citado por débitos fiscais. Você me exige 500 rublos por 6 meses e mais 25 por falta de declaração de rendas. O meu trabalho a todo outro trabalho é igual.
Veja só quantas perdas de vulto, que despesas requerem meus produtos e quantos gastos com material. Você conhece por certo o fenômeno "rima": suponha que uma linha
finde na palavra "pai" e que ao fim da outra linha, menos uma, se imprima por exemplo a palavra "lampaiapapai". Em linguagem de fisco a rima é uma letra a termo fixo para desconto ao fim da linha sem mais prazos. E sai-se à caça da minúcia de flexão ou sufixo na caixa escassa das conjugações e casos. Tenta-se pôr essa palavra numa linha mas ela não cabe, força-se e ela se esfarinha. Cidadão fiscal de rendas, eu lhe juro, as palavras custam ao poeta um duro juro. Para nós, a rima é um barril. Barril de dinamite. O verso, um estopim. A linha se incendeia e quando chega ao fim explode e a cidade em estrofe voa em mil. Onde encontrar e a que tarifa uma rima que mire e mate de uma vez? Dela talvez ainda sobrevivam cinco exemplares nos confins da Venezuela. E tenho que enfrentar pólos e saaras, e me lanço entre dívidas e vales dividido. Cidadão, condescenda, as passagens são caras! A poesia - toda - é uma viagem ao desconhecido. A poesia é como a lavra do rádio, um ano para cada grama. Para extrair uma palavra, milhões de toneladas de palavras-prima. Porém que flama de uma tal palavra emana perto das brasas da palavra-bruta. Essas palavras põem em luta milhões de corações por milhares de anos. Por certo há poetas de diversas classes. Quanto vates têm dedos ágeis! Vertem versos da boca como mágicos, tanto deles como dos clássicos. E que dizer dos líricos castrados?! Furtam linhas alheias e se fartam - tipo de peculato dos mais alastrados neste país, entre outros peculatos. Esses versos e odes que os simplórios aplaudem hoje com soluços e confetes passarão à história como os gastos acessórios da obra que fizemos, dois ou três poetas. Come, como se diz, quilos de sal, maços e maços de cigarros consome para extrair a palavra essencial das profundezas artesianas do homem. E de repente o imposto já não é tão caro. Tire a roda de um zero do total! Um rublo e noventa custam os cigarros, Um e sessenta, o quilo de sal. No questionário há um monte de quesitos: "O Sr. fez viagens? Sim ou não?" Mas como, se eu fiz voos infinitos em dezenas de pégasos nestes 15 anos?! E agora - ponha-se no meu lugar - nesta coluna há algo sobre criados e fortuna. Mas como, se sou dirigente e servidor também de toda a gente? A classe fala pelas nossas palavras. Nós somos proletários e motores da pena. A máquina da alma com os anos se trava, e dizem: - Ao arquivo! Acabou-se. Um de menos! Menos amor, cada vez menos ações, e o tempo na corrida minhas têmporas esmaga. E vem a mais terrível das amortizações, a de almas e corações - última paga. E quando este sol cevado como um porco se erguer sobre um porvir sem mutilados nem mendigos já estarei podre e morto, de borco, junto de uma dezena de colegas. Façam o meu balanço a posteriori! Mas eu afirmo (e sei que meu verso não mente): no meio dos atuais traficantes e finórios eu estarei - sozinho! - devedor insolvente. A nossa dívida é uivar com o verso, entre a névoa burguesa, boca brônzea de sirene. O poeta é o eterno devedor do universo e paga em dor porcentagens de pena. Eu estou em dívida com os lampiões da Broadway, com o Exército Vermelho, com vocês, céus de Bagdádi**, as cerejeiras do Japão e toda a infinidade a que eu não pude dar a sobra de uma ode. Mas para que afinal estas molduras são? Para que fazer da rima, mira e do ritmo, chibata? A palavra do poeta é a tua ressurreição, a tua imortalidade, cidadão burocrata. Daqui a séculos, do papel mudo toma um verso e o tempo ressuscita. E volverá este dia, seus fiscais de tributos, a miragem dos mitos e a catinga de tinta. Convicto vivente contemporâneo, compra
no Comissariado uma passagem para a imortalidade e, computados, os efeitos do verso, reparte, o meu salário por trezentos anos! Mas a força do poeta não se reduz só a que te lembrem no futuro entre soluços. Não! Hoje também a rima do poeta é carícia slogan açoite baioneta. Cidadão fiscal de rendas, eu encerro. Pago os 5 e risco todos os zeros. Tudo o que quero é um palmo de terra ao lado dos mais pobres camponeses e obreiros.
Porém se vocês pensam que se trata apenas de copiar palavras a esmo, eis aqui, camaradas, minha pena, podem escrever vocês mesmos!"
in: Maiakóvski – Poemas . trad. Boris Schnaiderman, Augusto & Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva.
no original: http://www.stihi-rus.ru/1/Mayakovskiy/39.htm
** aldeia na qual nasceu o poeta.
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